Há poucos dias, encontrei na rua um senhor que atendi há dois anos,
por ocasião de um derrame cerebral. Na primeira visita, encontrei-o na
cama, agitado, confuso, com a boca torta, incapaz de movimentar o lado
direito do corpo e de pronunciar uma só palavra inteligível.
Dias atrás, quando gritou meu nome do outro lado da rua, custou-me
crer que fosse a mesma pessoa. A postura física era perfeita; a voz e a
fluência verbal, impecáveis; não fosse pela força ligeiramente diminuída
ao apertar-me a mão e pela claudicação discreta da perna direita,
estaria como antes.
Volto à dificuldade de enxergar a um palmo do nariz. Casos de perda
seguida de recuperação das funções cerebrais acontecem desde as
cavernas, mas foi apenas no início do século 19 que se levantou a
suspeita de que o cérebro seria um órgão moldado pela experiência.
Embora, em 1920, Karl Lashley tivesse sugerido que a distribuição dos
neurônios no córtex cerebral (área que controla os movimentos) de
macacos se alterava a cada semana, até a década de 1970 o pensamento
corrente era que as conexões entre os neurônios (sinapses) formadas na
infância permaneceriam imutáveis pelo resto da vida.
Hoje considerado clássico, um experimento realizado nos anos 1980
abalou esse dogma. Trabalhando com macacos, pesquisadores americanos
demonstraram que a amputação de um dedo provocava atrofia dos neurônios
da área cerebral responsável pelo controle motor do dedo amputado, mas
que esse espaço não permanecia desocupado: era invadido pelos neurônios
encarregados da motricidade do dedo adjacente, situados a milímetros de
distância.
Na década de 1990, ainda em macacos, foi provado que a secção do
feixe nervoso responsável pela movimentação do membro superior provocava
atrofia dos neurônios da área cerebral correspondente, conforme
esperado, e que essa área, então inútil, era ocupada por neurônios
oriundos dos centros cerebrais responsáveis pelo controle dos músculos
da face, situados não mais a milímetros, mas a centímetros de distância.
Desde então, não houve mais questionamentos sobre a plasticidade do
tecido nervoso: no cérebro adulto, nenhum espaço permanece desocupado.
Hoje sabemos que também na espécie humana, a área cerebral
encarregada do controle motor de um membro perdido é ocupada por
neurônios que migram dos centros controladores da musculatura facial,
que os violonistas desenvolvem hipertrofia das áreas cerebrais
coordenadoras dos movimentos dos dedos da mão mais solicitada e que, ao
tocar com as pontas dos dedos os caracteres de um texto em Braile, o
centro da visão dos cegos é ativado.
Ao lado dessa capacidade de um neurônio de projetar suas ramificações
para estabelecer novas sinapses às vezes situadas a centímetros de seus
domínios originais, a descrição de outro fenômeno revolucionou o
conceito de plasticidade cerebral: a capacidade que o sistema nervoso
central tem de formar novos neurônios (neurogênese) durante a vida
adulta.
Até dez anos atrás, o dogma central da neurociência era que os
neurônios perdidos jamais seriam recuperados. O argumento para
justificá-lo parecia convincente: se novos neurônios surgissem e
alterassem a arquitetura da circuitaria cerebral, como poderíamos
conservar memórias e manter nossa identidade?
Esse dogma caiu nos últimos anos, quando experiências conduzidas em
pássaros mostraram que, ao aprender uma nova canção, surgem novos
neurônios nos centros cerebrais que coordenam o canto e quando foi
documentado o nascimento de novos neurônios em duas áreas cerebrais do
homem e de outros mamíferos: o bulbo olfatório (responsável pela
organização do olfato) e o hipocampo (área de processamento das
memórias).
A neurogênese é um processo lento, regulado por moléculas presentes
no tecido nervoso conhecidas pelo nome de fatores de crescimento.
A neurogênese tem sido demonstrada em casos de acidente vascular
cerebral: os novos neurônios formados no hipocampo migram para a região
destruída pela falta de oxigênio para povoá-la. A maior parte deles
morre na travessia, mas alguns conseguem estabelecer conexões com
neurônios de outras áreas e restabelecer circuitos perdidos.
Em 2002, um estudo feito com antidepressivos mostrou que o efeito
benéfico desses medicamentos no tratamento da depressão coincide com o
aparecimento de novos neurônios no hipocampo. Curiosamente, os pacientes
que recebem essas drogas costumam levar cerca de quatro semanas para
notar melhora dos sintomas: exatamente o tempo necessário para os novos
neurônios se integrarem funcionalmente aos circuitos cerebrais.
Muito intrigantes são os trabalhos recém-publicados que mostram que
ratos transferidos de gaiolas pequenas e de paisagem monótona para
outras mais amplas, cheias de brinquedos, rodas estacionárias para fazer
exercício e ricas em estímulos visuais, experimentam aumento da
neurogênese no hipocampo.
Saber que nossos neurônios são capazes de migrar para áreas cerebrais
“vazias” e que continuam nascendo todos os dias sob a influência de
fatores de crescimento, medicamentos, atividade física e desafios
intelectuais é alentador para os que temem a perda do domínio das
faculdades mentais no fim da vida, porque, como disse Machado de Assis,
“A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa
da natureza humana”.