Como a memória funciona e o que fazer para não perdê-la (Postado por Erick Oliveira)
Maria Fátima de Módena, 45 anos, dirige uma empresa que monta feiras e exposições pelo Brasil. Logo depois de acordar, começa a ler os jornais. “Uso muito as notícias no meu trabalho”, diz. Em seguida, senta-se à frente do computador e abre as dezenas de e-mails que a esperam no início do dia. No serviço, o celular toca o tempo todo. “A pia do estande está vazando.” “Deu curto no sistema elétrico.” “O equipamento ainda não chegou.” E Fátima sai correndo de um lado para outro, acionando colaboradores, tomando providências. Há três anos, a executiva começou a esquecer coisas. “Minha memória estava péssima. Tinha brancos constantemente. Não conseguia guardar nenhum telefone. Até o da minha própria casa às vezes eu esquecia.”
Estresse? Não só. A avalanche de informações, uma das características mais marcantes do mundo contemporâneo, aqui ou em qualquer outro país, atinge em cheio a nossa habilidade de recordar. As folhas de fax, os programas de televisão, as notícias do jornal e até as matérias das revistas (opa!) representam uma quantidade de dados que parece ser maior do que aquilo que podemos guardar. Os psicólogos até já inventaram um nome para isso: síndrome da fadiga da informação. “Quando estamos abarrotados de dados, fica difícil se concentrar naquilo que realmente precisamos lembrar mais tarde”, diz a psicóloga Cynthia Green, coordenadora do programa de aprimoramento da memória da Escola de Medicina de Mount Sinai, em Nova York. “É muito mais um problema de assimilação do que de esquecimento.”
A assimilação (é bom repetir a palavra, isso ajuda a lembrar) é a primeira etapa do processo de memorização. Inicialmente, as imagens, os diálogos, movimentos, cheiros etc. são captados pelos sentidos. Há um rearranjo no circuito cerebral, uma alteração na taxa de disparos químicos entre os neurônios –– as células que fazem a comunicação de dados no cérebro. Essa é a memória de curto prazo, que você usa rapidamente e esquece em seguida. Exemplo disso são os números de telefone, que vão para o espaço assim que você acaba de discá-los. Para que você possa acionar um dado uma ou duas semanas depois de tê-lo captado, é preciso convertê-lo em memória de longo prazo. Esse trabalho fica a cargo do hipocampo (veja o infográfico na página XX). É ele que entra em ação quando você decide quais as frases, os rostos e os números que devem ser arquivados para uso futuro. O hipocampo envia os dados para diferentes locais do córtex cerebral. Lá ocorre uma alteração química, dessa vez mais profunda, que fortalece as conversas entre as células da massa cinzenta. Quanto mais extensa e bem enraizada for a rede de neurônios, mais fácil será o acesso ao escaninho depois. “Mas, se você lida com a informação de maneira superficial –– surfando como um possesso pela Internet, por exemplo ––, não vai conseguir reter nada”, diz a psicóloga Cândida Camargo, do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Assim que as cenas, os sons, os cheiros etc. são integrados aos circuitos do cérebro, o hipocampo descansa e entra em cena o lobo frontal, estrutura responsável pelo processo de recordação. É ele que traz à tona todas as informações que foram devidamente estocadas. “O lobo frontal coordena as diversas memórias e é a parte do cérebro que o ser humano tem mais desenvolvida em relação aos animais”, diz o psicólogo Orlando Bueno, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No lobo frontal, que é tão complexo quanto frágil, a memória de curto prazo e a de longo prazo se completam para formar aquilo que chamamos de raciocínio. Esse processo de recuperação de dados é o que falhou no cérebro do presidente Fernando Henrique Cardoso quando, há alguns dias, na inauguração de uma fábrica da General Motors elogiou, por engano, a Ford – arquiinimiga da GM.
Além do excesso de informações, a falta de memória pode ser provocada também pela depressão, pela ansiedade e pelo estresse. Uma pessoa com tendência ao baixo-astral, por exemplo, acaba se preocupando mais com o que a está aborrecendo do que com os outros aspectos da vida. Um ansioso tem muita dificuldade para se deter por muito tempo no mesmo assunto. O estresse, além de atrapalhar a concentração, pode interferir de outras maneiras. Suspeita-se que ele encolha o hipocampo e libere hormônios que danificam as moléculas transportadoras de energia, deixando o cérebro sem força suficiente para operar. Sem contar que existe um parentesco estreito entre o estresse e a síndrome da fadiga da informação. “Uma das principais causas da tensão é o excesso de conteúdo. Em qualquer função de chefia, a informação é tanta que o sujeito acaba esgotado. É quando você acorda à noite pensando em trabalho”, diz o neurologista Iván Izquierdo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e um dos cientistas brasileiros mais prestigiados fora do país.
Os brancos de memória motivaram e motivam muitas experiências. No ano passado, cientistas da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, começaram a desenvolver a mais promissora das drogas destinadas a ajudar a memória. Depois de alterar o código genético de alguns ratinhos, eles conseguiram elevar a quantidade de receptores de NMDA (um tipo de neurotransmissor, a substância responsável pela comunicação entre os neurônios). Quando esses receptores são repetidamente acionados, ocorrem reações químicas que produzem uma espécie de ponte entre os neurônios e ajudam a fixar a memória. Calcula-se que daqui a oito ou dez anos já esteja disponível no mercado uma droga inspirada nesses estudos. Ela será útil para pessoas que sofrem de doenças degenerativas do cérebro, como as diversas demências e o Alzheimer, que danificam os neurônios. Mas o mais interessante é que, segundo o neurologista Joseph Tsien, diretor da experiência, ela também será útil para pessoas saudáveis que experimentam leves esquecimentos.
Há outras novidades no horizonte. Além de estimular a comunicação entre os neurônios, os novos experimentos buscam induzir, com segurança, sua multiplicação. E isso é algo extremamente recente no mundo da ciência. Até dois anos atrás, era tido como certo que neurônios não se reproduziam. Quando um morria, não era substituído. Agora, está comprovado que a memória não é formada somente pelos neurônios que acompanham a pessoa desde o nascimento. “Mesmo na idade adulta é possível contar com uma reserva de novos neurônios”, diz o neurologista Paulo Bertolucci, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Eles surgem a partir de células primordiais (ou células-tronco), que existem em todo o sistema nervoso e podem se especializar em atuar no interior do hipocampo. O desafio do momento é conseguir aumentar a produção dessas novas células cerebrais. “Supondo que possamos determinar os genes que ordenam essa multiplicação, seria só mudar essa chave”, diz. Algo que, de acordo com Bertolucci, só vai acontecer daqui a muitos anos. De todo modo, a possibilidade de aportar novos neurônios é uma ótima notícia para cérebros cansados de guerra, que já estão na situação de esquecer mais do que lembrar.
Claro, há riscos envolvidos. “O cérebro é o resultado de muitos anos de evolução do homem. Qualquer mudança artificialmente induzida poderia alterar esse equilíbrio”, diz Gilberto Xavier, neurofisiologista da USP. “Um crescimento dos receptores NMDA poderia levar a uma maior propensão à epilepsia, por exemplo.” É quase um curto-circuito. O sucesso da multiplicação dos neurônios depende basicamente de conseguir organizá-los. Do contrário, um crescimento desordenado poderia até virar um tumor.
Enquanto as pesquisas caminham, quem sofre com a perda de memória já achou alguns paliativos na farmácia. A droga mais popular é um medicamento fitoterápico de nome esquisito: o ginkgo biloba. O ginkgo é de uma família antiqüíssima de plantas, anterior até aos dinossauros. Para começar, ele deixa o sangue menos denso, fazendo-o correr mais rápido pelos vasos e levar mais energia e oxigênio para os neurônios. Além disso, o ginkgo degrada alguns inimigos do cérebro, como a enzima MAO, que atrapalha as comunicações cerebrais, e os radicais livres, que viajam pelo corpo todo depredando e envelhecendo os tecidos.
Em uma pesquisa da Unifesp feita este ano, 23 sexagenários –– todos saudáveis –– tomaram uma cápsula de ginkgo por dia durante seis meses e se submeteram a vários testes. Um deles consistia em repetir, em uma prancha com nove quadradinhos, a seqüência de posições demonstrada. Antes de usarem o remédio, conseguiam repetir em média 3,4 posições. Depois, foram capazes de acertar 5,4. “Eles demostraram uma melhora de memória, de atenção e de aprendizado”, diz a psicóloga Ruth Ferreira dos Santos, responsável pela pesquisa. Mas o ginkgo tem suas limitações. Ao deixar o sangue mais diluído, o poder de cicatrização do indivíduo diminui e podem surgir sangramento internos.
Na falta de medicamentos totalmente confiáveis, a prática de exercícios físicos aeróbicos (levantar pesos, atividade anaeróbica, não ajuda em nada) aparece como um dos meios mais garantidos de manter uma boa memória. “Eles ativam a circulação do sangue, reduzem o estresse e a ansiedade”, diz o professor de Educação Física Marco Túlio de Mello, da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais. As atividades em grupo também aprimoram a coordenação motora, que pode ser entendida como a memória que usamos para movimentar o nosso corpo.
Uma dieta balanceada, com refeições na hora certa, também contribui. “Quem acorda de manhã, toma uma xícara de café e sai para a rua corre o risco de ter uma memória menos ativa até a hora do almoço”, diz Orlando Bueno, da Unifesp. É que a energia necessária ao bom funcionamento do cérebro chega por meio dos alimentos. Acredite ou não, o próprio ato de mastigar, por si só, ajuda. Em uma pesquisa realizada este ano com ratos de laboratório, cientistas da Universidade de Gifu, no Japão, descobriram que o movimento das mandíbulas conserva as lembranças por mais tempo. Não se sabe ainda como isso acontece, mas se especula que ele reduza o estresse e aumente a irrigação do cérebro.
Há também exercícios mentais que podem estimular a memória. Um deles é acrescentar outros significados ao que você quer lembrar –– uma forma simples de fortalecer as conexões entre os neurônios. Todo bom professor de cursinho pré-vestibular sabe que isso funciona. “Não dá mais para passar conhecimento de uma maneira tradicional. A gente tem que usar piada, contar histórias, músicas e tudo o mais para que os estudantes consigam guardar o conteúdo das aulas”, diz Paulo Figueiredo, professor de Biologia do Curso Objetivo, em Lavras, Minas Gerais, que, aliás, está lançando o seu segundo CD com letras de biologia. O... humm, como é mesmo o nome dele?, ah, é mesmo, hipocampo terá seu nome mais facilmente gravado depois que você souber que ele deriva de uma palavra latina que significa cavalo-marinho. O nome é esse porque o formato do hipocampo lembra o do bicho.
Também é recomendável que você assuma o comando da massa de informações com que lida. Como? Não deixando que ela controle você. “Determine quando você está mais disponível a receber novos dados e tente limitar a absorção de conhecimentos novos a horas específicas”, diz Cynthia Green (aquela médica do Mount Sinai, em Nova York, lembra-se?). A atarefada Fátima (consegue lembrar quem é?) aprendeu a lidar com isso e hoje desliga o celular quando não está trabalhando.
Outra dica: não deixe toda a responsabilidade de lembrar para os seus pobres neurônios. Alimente uma espécie de memória paralela. Liste as coisas que você tem a fazer. Use muito a agenda. O gerente de treinamento da Johnson & Johnson, Roberto Zardo, 45 anos, recebe uma média de cinqüenta e-mails por dia, assina dois jornais, três revistas e navega todo dia na rede. “A entrada de informação é brutal”, diz. Para resolver a questão, decidiu se aliar à tecnologia. Sua agenda eletrônica guarda 706 números de telefone e 467 datas de aniversário. É mais de um parabéns por dia. O pesquisador Jacob também tem seus truques. O primeiro é anotar praticamente tudo. Ele transforma em papeizinhos de recado todas as informações que vê ou ouve. Dá a elas um título (com indicações como “recomendo”, “preciso”) e depois passa para o computador, em que são organizadas em pastas de acordo com uma hierarquia de assuntos. “Eu não me lembro da informação, mas sim de onde ela está”, diz. Seus dados, compromissos, endereços e telefones se encontram todos em um disco rígido que ele carrega para todo lugar que vai e acopla diversos computadores. Até mesmo as conversas telefônicas podem ser incluídas nesse arquivo, pois ele grava cerca de vinte chamadas por dia. O recado é um só: tente liberar a cuca de tudo que puder ser armazenado em outro lugar.
Nas livrarias, existem vários livros cheios de promessas. Memória Turbinada, Como Ter uma Memória Superpoderosa. Coisas do tipo. Todos trazem exercícios que buscam ajudar a fixar os arquivos do passado. Alguns ensinam a construir associações tão infalíveis quanto estranhas. Considere, por exemplo, a seguinte frase: “Cavalo-marinho não é lobo mau.” Gravando-a, você poderá lembrar-se com mais facilidade de que tanto o hipocampo (cavalo-marinho) quanto o lobo frontal (lobo mau) estão relacionados ao armazenamento e à recuperação de informações, nessa ordem.
Bem, mesmo que você não aproveite tanto as dicas dos livros, saiba que o simples fato de ler já é um bom exercício para a memória. Ao ligar os novos conhecimentos ao que já sabe, você promove um caloroso diálogo entre seus neurônios, o que é fundamental para a construção das lembranças. Com tudo isso, temos certeza de que até os mínimos detalhes desta matéria ficarão para sempre na sua mente. Você vai se lembrar de que o ginkgo tem forma de cavalo-marinho, que o hipocampo pode se multiplicar e que os neurônios são vegetais que já existiam na época dos dinossauros.
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